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Sobre o indiano da banquinha de revistas

Saí do teatro para respirar o dia. Ficar muito tempo lá dentro às vezes me agonia, acho que é porque a gente nao vê as horas passarem e quando se dá conta, a noite chegou. Tinha almoçado tarde, então não sentia fome. Pensei - vou comprar um chocolatinho, pois imagino que até o fim da peça já estarei com uma fominha. No fim do quarteirão, uma banca de revistas. Perguntei o preço do chocolate e comecei a procurar as moedinhas para pagá-lo.


Ele começou a conversa:

- De onde você é?

- Do Brasil!

- Ahhh do Brasil, como está o clima lá?

- Super quente! Todo mundo passando calor lá, enquanto a gente passa frio aqui. E o senhor, de onde é?

- Sou indiano. - Ele não se conteve e continuou as perguntas - Você gosta mais daqui ou de lá?

- De lá, lá é minha terra, minha casa, minha origem.

Ele disse que sentia o mesmo em relação a sua cidade, mas que sua preferência não passava apenas por essa relação afetiva.

- Também prefiro a Índia, pois aqui, nos EUA, existe liberdade demais, é um país muito livre, as mulheres podem fazer o que quiser.

- E você acha ruim que as mulheres possam escolher o querem para si?

- Nao, eu até acho bom, que bom que elas podem escolher, mas elas têm liberdade demais. Dei uma risada interna e perguntei:

- O senhor tem filhos?

- Sim, três meninas. Tentei ter um menino, mas vieram sempre meninas.

- Ahhh, então é por isso que o senhor tem tanto medo dessa liberdade - brinquei com ele - suas filhas vão poder fazer suas próprias escolhas.

Demos risada juntos. Em um tom carinhoso ele continuou :

- Quer ver fotos delas? Essa é a mais velha, quer ser advogada. A do meio quer ser designer de interiores. A pequena tem três anos e meio e está tão feliz esses dias - falava entre uma boa risada e outra. Levei um iphone 4 pra ela e ela disse "Papai, você me compreende, você entendeu que eu precisava de um iphone 4. Agora ela anda feliz pela casa, com sua mais nova aquisição.

Contou como quem apresenta seu maior tesouro, num misto de orgulho com surpresa ao lembrar da espontaneidade da filha.


Contou ainda outras histórias da pequena, que parece ser mesmo uma figurinha. Ainda explicou que ano que vem prentende comprar uma casa em sua cidade natal, para que as filhas possam escolher onde querem viver e para que elas conheçam suas origens. Disse que em família só se fala a língua materna e que se acostumou a viver a vida novoiorquina.

Meu relógio avisou, hora de voltar. Agradeci o chocolate, a conversa e a simpatia, falei que voltaria no domingo que vem, que é quando ele trabalha no local novamente, para dar um alô. Fui embora percebendo nossas diferenças ideológicas e culturais, mas também observando nossos pontos em comum, como estrangeiros que somos, com nossos sotaques, batalhando em um país que não é o nosso e, claro, o carinho e cuidado com a familia (acho que foi o que nos aproximou nessa conversa de 15 minutos).


Esse senhor nao é diferente de mim. Tenta, faz, erra, acerta, tenta de novo, ri de si mesmo e procura viver com alguma dignidade. Ele enxerga o outro, diferente de tantos por aqui. Ele me enxergou ali, parada em sua banquinha. Suas três filhas terão direitos que talvez ele não concorde, também crescerão numa cultura bastante diferente da dele. Por isso, torço para que ele saiba respeitar esse universo ambíguo em que as pequenas vivem, mas que também continue cultivando essa alegria recheada da tradição indiana, que me chamou a atenção e me fez parar para o gostoso

Instagram - La cité from de cima!

bate papo.


Hoje, um dia depois do encontro, penso nele com carinho.


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